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quarta-feira, outubro 20

A invenção do campo disciplinar da Arquitetura: contribuições e contraposições renascentistas[1]

Carlos Antônio Leite Brandão
Professor do Departamento de Análise Crítica e Histórica da Arquitetura da Escola de Arquitetura da UFMG, Mestre em Filosofia, Doutor em Filosofia e Especialista em Cultura e Arte Barroca.


1. Introdução
Todos os conceitos de história e crítica da arte, inclusive do que seja Arte, consolidam-se na modernidade durante o século XVIII. O núcleo irredutível desse sistema moderno com que ainda trabalhamos, mesmo que precariamente, é a definição da Arte enquanto Pintura, Escultura, Arquitetura, Música e Poesia, ou seja, as ³artes maiores², as quais se separam do artesanato, da ciência e da moral, como se ilustra na obra de Kant. Pensar a arquitetura como disciplina no Renascimento é, portanto, estarmos aquém dessa história e divisão disciplinar, em sua ³pré-história². E isso pode nos ser de grande valia num momento, como neste início do século XXI, onde se esboroam as rígidas demarcações disciplinares e onde a complexidade dos problemas e das soluções por ele exigidas - tais como os das cidades, das identidades culturais ou da violência no mundo contemporâneo - nos colocam a necessidade de ultrapassarmos a separação entre os vários campos e entre o Belo, o Bem e a Verdade, ou seja entre a Arte, a Moral e Ciência.[2]
No sistema antigo greco-latino, secnh e ars englobavam tudo o que hoje chamamos de arte, artesanato e ciência e entendia-se a Arte como totalmente ensinável e pouco dependente do talento e da inspiração. O Belo não era distinto do Bem e não se separava do útil e do propósito pedagógico, sobretudo quanto à educação da juventude, como lemos em Platão. Em Aristóteles, Cícero, Horácio e Panezio, a beleza era vista como ³decoro² e se associa a uma componente ética formando a kalokagatia. Ela adquiriu relevância metafísica em Plotino, como mais tarde em Marsilio Ficino, já no Renascimento. Ao separar as ³artes da necessidade² e as ³artes do prazer², Aristóteles prepara a classificação das artes liberais que Marziano Capella elenca como sendo a Gramática, a Retórica, a Dialética ou Lógica, a Aritmética, a Geometria, a Astronomia e a Música. Como se observa, nessas sete artes liberais estão excluídas as artes figurativas e a arquitetura.
Esse esquema das sete artes liberais é herdado pela Idade Média e compõe o Trívio e o Quadrívio curriculares. Com o surgimento das universidades no século XII, Filosofia, Direito e Teologia consolidam-se como novas matérias junto àquelas liberais. Distinta delas, temos as sete ³artes mecânicas², como definido por Ugo San Vittore: lanifício, armadura (arquitetura, escultura, pintura aí incluídas como subalternas), navegação, agricultura, caça, teatro e medicina. Temos, portanto, uma divisão entre as artes liberais, que dependem do ³espírito², e as artes mecânicas ou servis, que dependem do corpo, da mão. Em muitas escolas ensinavam-se a poesia e a música, mas as outras artes figurativas eram aprendidas nas corporações de ofício, fora dos currículos e das ³disciplinas². Os manuais que servem para instruí-las são apenas de caráter técnico e normativo de procedimentos e nunca ligam as artes umas com as outras ou com a filosofia, a ciência ou as ³artes liberais². Dessa forma, não há propriamente uma estrutura ou ciência das artes, englobando-as dentro de um sistema disciplinar.
O Renascimento altera este quadro e prepara o surgimento do sistema moderno das artes na medida em que muda a posição que elas assumiram até aí e acrescenta novas perspectivas, conteúdos e significados nos seus estudos. Em particular, ele liga as artes figurativas, cuja afirmação se dá a partir de Cimabue e Giotto nos séculos XII e XIII, e a poesia através de uma releitura do ut pictura poiesis, de Horácio. A meio caminho entre o Medievo e a Idade Moderna, Pintura, Escultura e Arquitetura aparecem no quattrocento entre as artes liberais e as artes mecânicas e se ligam intensamente seja entre si, seja com a literatura, com a ciência e com a cultura clássica, como se exemplifica magistralmente na produção de Alberti e Leonardo. Essa afirmação das artes figurativas como ³liberais² dá-se entre os séculos XIV e XVI e permite dar-lhes o status mais nobre antes reservado à Retórica, à Poesia e à Música, associarem-se mais estreitamente com as ciências e com a matemática e separarem-se do artesanato. É o caso, por exemplo, de Brunelleschi que distingue sua atividade da do artesão e do canteiro de obras. Enquanto liberais, as artes figurativas são vistas como artes mais intelectuais do que mecânicas na medida em que são, como diz Vasari, ³artes do desenho², do que originará o termo ³belas artes². E, como tal, o seu aprendizado desloca-se, lentamente, das oficinas para as academias. Uma expressão significativa disso é a criação, em 1563, da Academia de Arte de Florença, separando-se da Associação de Artesãos e fornecendo um curso regular de instrução que incluía a geometria, a matemática e a anatomia. Mesmo que ainda não se constitua aí o moderno sistema das cinco artes, estas se afinam entre si e, ligando-se à literatura e à ciência, separam-se dos ofícios e dos artesãos. Será a França do século XVII, a querelle entre os antigos e os modernos, a emancipação das ciências naturais e a reformulação do conceito de progresso humano que separarão Arte e Ciência e os campos da beleza, da verdade e da moral, tal como estabelecido em Kant. Essa separação, calcada na idéia de progresso e acúmulo de conhecimentos inexistia no Renascimento, na Idade Média e nos Antigos.[3]

2. Contribuições renascentistas para a ³invenção² da disciplina da arquitetura
Se a constituição madura do campo disciplinar da Arquitetura só ocorrerá no século XVIII quando da consolidação do agrupamento moderno das artes, pensar a Arquitetura como disciplina no Renascimento só pode ser visto como um momento proto-moderno, quando ela não mais se enquadra nos agrupamentos medievais enquanto arte mecânica ou subalterna - na medida em que foi aproximada das artes liberais do espírito e do desenho, como em Vasari - mas ainda não adquiriu a constituição autônoma que a distinguirá das ciências, da moral e das demais artes. Cumpre-nos estudá-la nesse intermezzo e dar a ver em que medida se altera o local que ela ocupa na cultura e no saber diante do medievo e quais as contribuições que ela, se examinada neste novo local cultural, fornece para a nossa produção e seu estatuto disciplinar na contemporaneidade. Sua ³fraca² ancoragem disciplinar no Renascimento permitiu-lhe avanços e conexões com outros campos do saber e da cultura responsáveis pela revolução empreendida pelo quattrocento. Da mesma forma, talvez cumpra-nos, hoje, enfraquecer um pouco os limites disciplinares de nosso ofício, tal como também feito por Le Corbusier no Por Uma Arquitetura, de maneira a torná-lo mais permeável a novas conexões e avanços e a pensar a arquitetura não como tendo fim em si mesma, mas sendo instrumento de uma vida mais plena e mais feliz.
Já dissemos que, enquanto ³disciplina² o local que a Arquitetura ocupa no Renascimento é intersticial, entre o medievo e o moderno. Isso já nos diz que o campo disciplinar da arquitetura não foi propriamente inventado e intencionalmente proposto, mas construído lentamente. Por um lado, o Renascimento prepara esse campo; por outro, ele se recusa a conter a Arquitetura plenamente dentro dele. A Arquitetura do século XV preparava este campo justamente através do contágio com outros campos, como as letras e as ciências. ³Disciplinar² a Arquitetura dentro de um campo significaria, portanto, arrefecer seu ímpeto e as causas de seu novo status e sentido.
Como a Arquitetura vai construindo e delimitando esse campo disciplinar? Creio que isto ocorre à medida em que ela se constitui como ars liberalis e para isto destaco aqui seis aspectos interligados. O primeiro deles, já apontado acima, se dá em ela tentar trabalhar conceitos e procedimentos inspirados na retórica. Mas, aliado a isso, ela será reconcebida como um produto do ³desenho², lineamentis como diz Alberti no Livro I do De Re Aedificatoria, mais do que como prática meramente técnica e oficinal.[4] Assim fazendo, ela ganha uma dimensão intelectual e o arquiteto separa-se do artesão. Para isso, foi fundamental a codificação da perspectiva de ponto central empreendida por Alberti e Brunelleschi. A perspectiva permite a simulação prévia daquilo que será o objeto depois de construído e fornece a imagem de um produto antes de sua realização concreta. Ao simular um objeto prévio, um ³pré-objeto², funda-se o ³projeto arquitetônico², fruto da arte do desenho e da maquete, e que serve como instrumento de controle para a realização de toda a obra. Assim concebido, o projeto (desenho, maquete) controla e disciplina a produção prática. Neste sentido, a disciplina arquitetônica começa aí, constituindo modos de controle e orientação do fazer e do ofício. No século XV, a representação deste projeto ainda se limitava à realização de plantas, esboços, maquetes e alguns detalhes. A disseminação do corte ou projeção ortogonal, proposta por Alberti no De Re Aedificatoria e ampliada no século XVI, contribui para aumentar este instrumento de controle da prática. O corte já ocorria entre os arquitetos alemães, cujas corporações se ligava mais à dos pedreiros do que as italianas, mais ligadas aos artistas. Mas é no Renascimento italiano que ele vai ganhar uma importância maior, distinguir a representação arquitetônica da representação pictórica e conferir ao desenho uma especificidade própria ao destino construtivo da Arquitetura. Esta autonomia da dimensão do desenho, sua complexificação e seu entendimento como instrumento de especulação, de afinamento com as outras artes e ciências, e de controle da totalidade da obra a partir de uma arché, de um profissional que controla todas as fases e aspectos da construção de um edifício, é o segundo ponto a ser destacado nesta constituição do nosso campo disciplinar.
Um terceiro ponto refere-se à dotação de um corpus teórico e científico a reger a prática profissional. Na Idade Média, tínhamos uma manualística dedicada a estabelecer procedimentos oficinais e técnicos a serem repetidos. O Renascimento procura conferir uma linguagem à Arquitetura, regras abertas e capazes de serem impressas, divulgadas e interpretadas por aqueles que têm acesso aos livros que as contém. O termo latino disciplina vem do grego maqhma (estudo, ciência, conhecimento) e designa ³uma ciência enquanto objeto de aprendizagem ou de ensinamento².[5] Constituir uma disciplina implica em definir parâmetros, conceitos, limites, procedimentos reguladores e um repertório determinado capaz de ser transmitido, aprendido objetivamente e modificado, tal como ao falarmos nos apropriamos de um universo linguístico prée-determinado pela tradição mas que usamos livremente. Eis um aspecto crucial nesses primórdios da fundação do campo disciplinar da Arquitetura: dar aos escritos, ditos e procedimentos uma linguagem passível de ser escrita, transmitida e aprendida de modo universal e não restrito ao canteiro e à oficina. A teoria da arquitetura, cujo primeiro exemplar moderno creio ser o De Re Aedificatoria, de Alberti (1452), surge como instrumento de libertação do arquiteto na medida em que ele pode aprender os grafemas, as palavras, a gramática e a sintática de sua atividade e dar-lhe a fala própria ao seu estilo. A teoria foi, portanto, instrumento fundamental para libertar o arquiteto aprendiz do seu mestre e da mera repetição de procedimentos herdados. Essa liberdade instituída no século XV se faz também sob o nome, aparentemente avesso, de ³disciplina². Constituir um corpus científico, e não meramente técnico ou aplicado, para a Arquitetura; dota-la de uma linguagem compartilhada por muitos, de pretensões universais e aberta para ser apropriada de forma diversa pelos que a utilizam, como em Palladio, foi passo decisivo para estabelecermos um campo disciplinar próprio. Como nos dois primeiros pontos, também este aspecto permite à Arquitetura ser considerada de forma mais ³abstrata², mental, científica, e não meramente a reboque das realizações práticas ou dos parâmetros dos arquitetos. Enquanto ³disciplina² ela ganha uma dimensão autônoma, não limitando-se a homologar as práticas oficinais e podendo, inclusive, critica-las e muda-las. Ainda segue, a meu modo de ver, sendo este um dos maiores papéis das escolas, universidades e teorias da arquitetura: desafiar a prática e não meramente codifica-la, descreve-la ou reproduzi-la. Ao dar uma dimensão intelectual e científica à Arquitetura, a teoria desdobra-se como crítica, como história e como corpo de saber estabelecido e universal a enformar, criticar, parametrizar, dar sentido e servir como alteridade para a prática empírica, e vice-versa.
Chegamos então ao quarto ponto que divisamos como constituinte deste momento em que se inicia a construção da Arquitetura enquanto disciplina. Por dar-se o passado da antigüidade com o qual procura dialogar para pensar seu próprio presente, a arquitetura renascentista se pensa dentro de uma tradição e de uma dimensão histórica, a qual não copia, mas interpreta. Ela constrói seu presente sem pretender o radicalmente novo e sem copiar o passado, mas dialogando com ele e diferindo-se dele. Assim, por exemplo, Vitrúvio é retomado e problematizado, compreendido lá no seu tempo mas que deve ser refeito, reinterpretado ou mesmo superado e contradito diante das necessidades do presente ou do exame direto das ruínas antigas que, muitas vezes, não eram conformes ao que ele escrevera ou até o contraditava. É isto que distingue o modo com que Alberti o lê e o critica, como se exemplifica no início do Livro VI do De Re Aedificatoria, e o modo como ele era visto na Idade Média. Importa-nos, sobretudo, verificar que a nossa atividade arquitetônica passou a ser considerada inserida dentro de uma tradição e de uma história e que isso foi fundamental para estabelecer o universo disciplinar no qual nossos atos projetuais e construtivos são inevitavelmente lançados e obrigados a interlocutar.
Onde se materializa esse universo teórico e histórico, essa linguagem e essa tradição relativos à construção do espaço contruído e com os quais aprendemos, nos libertamos e nos lançamos ao exercer nosso ofício? Nas cidades e nos livros. A cidade permite e cria a linguagem, seja ela escrita, falada ou numérica. Ela é a guardiã da linguagem, a memória das falas e o arquivo e troca das experiências e tradições. Ela se constitui como o lugar da memória, da ciência e da técnica e, portanto, é, por excelência, o território onde as diversas artes, mecânicas ou liberais, podem se disciplinar. É nas cidades ­ com sua vida urbana e seu palimpsesto de ruínas e períodos históricos, correntes e tradições diversas superpostas ou colocadas lado a lado, passíveis de serem medidas, comparadas, analisadas, tal como Brunelleschi diante do Pantheon ou Alberti ao fazer o levantamento do fórum romano do Descriptio Urbis Romae ­ que temos o amálgama com que a Arquitetura se constitui enquanto disciplina. Não que as cidades ou ruínas não existissem antes. O que muda no século XV é aplicar sobre as mesmas coisas que existiam na Idade Média, tal como o tratado vitruviano ou os livros de Cícero, um novo olhar, exploratório, filológico, histórico, hermenêutico, heurístico e prospectivo. As ruínas não são materiais nostálgicos ou inúteis, mas campos onde exercer nossa capacidade de conhecer e recolher as lições com as quais construir o presente e o futuro. A cidade é vista, assim, como objeto histórico, produto da história humana e não divina, fruto de nossas ações e decisões, território em que a humanidade se documentou através de obras e no qual eu documento o meu presente, a capacidade do meu ingegno e da minha ação criadora, seja como indivíduo seja como corpo social. Essa cidade como produção e expressão humana, território privilegiado para o comércio de mercadorias e idéias e para a constituição de um mundo público no qual eu me liberto, é o local da fala, do diálogo, do aprendizado e da experiência do humano e do histórico. ³O ar das cidades liberta², dizia-se já na Idade Média. Sem este ar a disciplina da Arquitetura não poderia surgir. Pois ela é, enquanto teoria e história, criação tipicamente citadina e só poderia avançar num momento em que a dinâmica urbana, o homem ativo e o cidadão substituíssem o homem contemplativo e o servo do mundo feudal. Sem a cidade, não seria possível a constituição de uma ciência da arquitetura ensinável e universalizável, não seria possível sua abordagem teórica e sua experiência histórica, não seria possível sua futura constituição como disciplina.
Mas dissemos que também os livros materializam este universo teórico e histórico que berça o campo disciplinar da Arquitetura. A invenção do papel, seja para a imprensa de Gutemberg seja para o desenho do arquiteto em substituição aos papiros e pergaminhos de difícil e cara fabricação, foi decisiva para nosso tema. Até aqui, era difícil e oneroso desenhar projetos pois o suporte material impunha uma série de limitações desde o tempo até os custos por ele requeridos. Obrigados a uma extrema economia, as especulações e registros teóricos eram escassos, a história dos projetos era rasurada para dar espaço a novos desenhos, a constituição do campo documental era restrita e o próprio desenvolvimento de abstrações e especulações teóricas ou imaginativas era proibitivo. Sem a invenção da imprensa e do papel que permitirá a circulação mais barata dos livros e a libertação do demorado, custoso e impreciso trabalho dos copistas, a teoria não pode se universalizar e nem ser acessível ou aprendida fora dos canteiros e oficinas. Na medida em que a publicação e o acesso a livros ficam facilitados, torna-se possível esta universalidade e transmissibilidade da linguagem e a constituição de um público e de interlocutores a compartilharem um determinado campo do saber. Sem este público e sem esta acessibilidade universal, um campo disciplinar e uma comunidade científica não restrita aos muros das universidades e oficinas não poderiam existir. É essa invenção da imprensa e do papel, seja para o desenho do arquiteto seja para a produção e divulgação de suas obras de modo mais universal e liberto do trabalho impreciso e restrito dos copistas, o sexto e último aspecto que trazemos aqui para pensar o papel do Renascimento na constituição do campo disciplinar da Arquitetura que futuramente se incluirá no moderno sistema das artes.

3. Contribuições renascentistas para a indisciplina da arte e da arquitetura
Acima vimos algumas contribuições oferecidas pela Renascença para a constituição futura do campo disciplinar da Arquitetura, tal como ele será compreendido no moderno sistema das artes. Contudo, dissemos que isto não recobre toda a Renascença pois é justamente ao não definir-se rigidamente dentro de uma determinada fronteira que a arquitetura do quattrocento deixar-se-á contaminar por outros campos tais como a ciência, a matemática, a retórica, a literatura clássica, os studia humanitatis e as demais artes. Nesta última parte de nosso estudo examinaremos como a invenção na arquitetura do Renascimento se deu justamente a partir deste contágio e de ser seu campo difuso. Tomaremos apenas dois autores citados em nossa introdução, Alberti e Leonardo. No primeiro deles veremos como que a visão do mundo das letras e a visão do mundo das formas arquitetônicas se compenetram, se fecundam e se estruturam em contribuição recíproca. É uma visão transdisciplinar, que está além ou aquém das próprias disciplinas, o que permitirá à arquitetura, à gramática do toscano vulgar, ao visível e ao legível, disciplinarem-se reciprocamente e constituírem um corpus de saber transmissível e ensinável. Em Leonardo, partiremos de seus trabalhos mais propriamente técnicos e examinaremos a interrelação entre arte, ciência e técnica a fecundarem-se reciprocamente e a mostrarem como que a emergência do novo em um determinado campo ocorre quando dirigimos nossos olhares para fora dele e exercermos nossa capacidade de tradução interdisciplinar.

3.1. Alberti: gramática e arquitetura
No seu tratado sobre Arquitetura, Alberti tenta compreendê-la através do lógos, das palavras e das letras. Esse era o maior desafio a ser vencido: traduzir os campos técnico, funcional, visual e subjetivo da arquitetura para o mundo das letras, no qual aqueles não poderiam ser deformados pelas imperfeições dos copistas. Ao fazer essa tradução, a realidade poliédrica e metamórfica da Arquitetura recebe uma estrutura, um sentido, uma teoria que, substituindo os manuais técnicos dedicados a descrever procedimentos, dota a arquitetura de uma ³linguagem² e de uma liberdade antes inexistentes. Tendo suas leis e formas traduzidas em palavras e letras, a arquitetura tornou-se passível de ser aprendida por todos de modo livre e independente, não subordinando-se mais à mera transmissão oficinal do saber do mestre para o aprendiz.
Recorrer às letras e aos studia humanitatis foi necessário para unificar os vários aspectos referentes ao objeto examinado, formulá-los e ordená-los segunda uma coerência lógica e conceitual capaz de providenciar uma terminologia precisa e um método seguro que não se encontravam em Vitrúvio ³uma vez que ele escreveu de modo incompreensível para nós e é quase como não estivesse escrito nada².[6]
Alberti descreve os elementos das colunas comparando-os com as formas das letras e vendo-os como litterae esculpidas nas pedras e traduzíveis na bidimensionalidade de um ³L², de um ³C², de um ³C² invertido ou de um ³S².[7] Em tais figuras, Alberti imagina encontrar as ³letras² do alfabeto com que comporá as ³frases² da Arquitetura. Sugere-se aí um procedimento literário e gramatical para o arquiteto desenvolver a composição das ordens, não apenas por ver as ³formas² como ³letras², mas, sobretudo, por procurar encontrar-lhes o alfabeto universal, ao qual elas recorrem para ³escreverem-se², e interpretar a Arquitetura como linguagem provida de grafemas e gramática[8]. Associando formas arquitetônicas às letras, seu texto prescinde de desenhos e figuras, de incerto rigor e clareza diante do trabalho dos copistas. Seja exigindo que estes escrevam os números por extenso e evitem desenhos, seja vendo as formas como letras e as letras como formas e instituindo o alfabeto da modenatura das colunas, Alberti investiga a capacidade de as litterae compreenderem a realidade da arquitetura de forma menos equívoca que o ³desenho². Assim, ele funda uma ³língua edificatória², uma gramática e uma sintaxe capazes de fornecerem

³...um código geral de comportamento estético cujas malhas fossem tão rigorosas, claras e explícitas quanto dúteis, amplas e fecundas de implícitos desenvolvimentos. [...] Em resumo, Alberti forjava um língua, deixando maieuticamente aos outros a missão de traduzi-la e multiplicá-la em palavras.²[9]

Pelas litterae constrói-se uma ³língua². Por esta língua, o que é aparentemente pura forma é subtraído do acidental - seja da imagem exterior, seja dos copistas ou das interpretações - e insere-se numa objetividade e universalidade mais precisas e claras do que a frágil terminologia vitruviana. A Arquitetura é, em Alberti, matéria quase orto-gráfica.
Simetricamente à visão da arquitetura como escritura, também as letras serão consideradas como formas e não apenas como elementos gramaticais servindo à expressão de uma idéia. O melhor exemplo do ³modo arquitetônico² com que as letras são apreciadas por Alberti encontramos na Grammatichetta, a primeira gramática do vulgar, escrita por volta de 1435-1438, e que foi precedida pelo Ordine delle laettere pella lingua toschana, pergaminho manuscrito da Biblioteca Riccardiana, em Florença. Nessas duas obras, Alberti começa a organizar o toscano em uso e a dotá-lo da mesma dignidade que se atribuía ao latim, única língua considerada herdeira do grego e do hebraico, perfeita, unitária, imutável e dotada de regularidade tal que poderia ser pensada gramaticalmente e até confundida com a própria gramática. O mesmo motivo levou-o a escrever tanto em latim como em vulgar e a organizar concursos literários em vulgar, como o polêmico Certame Coronario, de 1441. Esse esforço era não apenas artístico ou literário, mas sobretudo político. Era através do vulgar que os conteúdos humanistas poderiam, segundo Alberti, alcançar uma penetração menos restrita a um círculo aristocrático e satisfazer seu propósito exposto no tratado Della Famiglia, de preferir ³ser mais útil e servir a muitos do que a poucos². Conferir uma gramática ao vulgar é análogo à constituição de uma linguagem e de uma teoria para a Arquitetura. Tal teoria, como a da pintura no De Pictura (1435), é concebida como metáfora da gramática e da retórica pensadas simultaneamente pelo humanista. Um espírito comum as atravessa e Alberti foi, provavelmente, o primeiro gramático a estabelecer relações significativas entre a arte da palavra desenvolvida nos studia humanitatis e as artes figurativas.
A aproximação e analogia entre a palavra e a imagem, entre as humanidades, a pintura e a arquitetura, fornece a chave da organização das letras e suas relações recíprocas, tanto na Ordine delle Lettere quanto na Grammatichetta: a forma, a qual inclui também alguns sinais gráficos indicativos da pronúncia. A Ordine delle lettere apresenta a seguinte ordem inicial:

i r t
n u m
l s f
c e o
b d v
p q g
a x z
ç ch gh[10]

Na Grammatichetta, a disposição varia apenas na inversão da terceira e quarta linha e na introdução do b ao lado do v, na quinta. Vejamos:

i r t
n u m
c e o
l s f
d b v
p q g
a x z
ç ch gh[11]

A ordem adotada vai das letras formalmente mais simples às mais complexas, segundo as vê o humanista. As letras da primeira linha têm uma haste curta simples (i), com um apêndice à direita (r) ou cortada (t). As da segunda linha, são as letras formadas pela união de duas ou três hastes curtas (n, u, m). As da terceira linha da Ordine delle lettere são as letras formadas por hastes longas simples (l), com apêndice à esquerda (s) ou cortada (f), e as da quarta linha são as letras formadas por linhas curvas totalmente abertas (c), parcialmente abertas (e) e totalmente fechadas (o). Na Grammatichetta a ordem é aperfeiçoada e Alberti prefere abrir com l, s, f a série de letras formadas com hastes longas e compostas que no texto anterior era interrompida pelas letras em linha curva. Na quinta linha das duas versões encontramos letras compostas por semicírculos combinados a hastes longas ou traços ondulados dirigidos para cima (b, d, v). Quando os semicírculos combinam-se com hastes e traços dirigidos para baixo temos as letras da sexta linha (p, q, g). As letras formadas por traços diagonais ocupam a sétima linha (a, x, z). As duas tabelas concluem com as letras compostas por união ou compressão de duas outras: ç, ch, gh.
Vimos no De Re Aedificatoria, ao descrever os elementos da coluna, que o literato aflorara no arquiteto. Prestando atenção ao aspecto material da escrita, ordenando as letras pela forma e dispondo-as em colunas e linhas conforme seu parentesco morfológico, vemos aparecer o artista no literato. Ele vê o signo alfabético não apenas como índice de um som ou uma idéia mas também como matéria e forma em que podem ser aplicadas, por exemplo, a geometria, a matemática e a arquitetura[12]. Quando Alberti elabora o Sepulcro Rucellai, as letras entram na arquitetura de forma tão precisa e determinante quanto a arquitetura entra nas letras. O legível e o visível, a idéia e a forma material, o mundo do pensamento e o mundo construído, as humanidades e a Arquitetura compenetram-se de tal modo que fica impossível distinguir onde termina um campo e começa o outro. Diluídas as fronteiras dos campos e disciplinas, estes passam a fecundarem-se reciprocamente, deixarem-se contaminar uns pelos outros e adquirirem novas formas geradas deste contágio. Contaminada pelas humanidades, a Arquitetura torna-se outra e é pensada em novas chaves. E essa novidade, repita-se, surge não pela inspiração das musas ou ex-nihilo, mas da ³tradução² arquitetônica da tradição e linguagem próprias a outro universo, como o das humanidades.
Criticamos aqui, simultaneamente, dois vícios comuns aos arquitetos e urbanistas de hoje. Em primeiro lugar, exigimos a ³tradução² da língua e do campo, e não sua importação pura e simples para dentro do território propriamente arquitetônico e urbanístico. É freqüente o vício de importar teorias, linguagens e procedimentos de outros campos e traze-los, sem qualquer tradução, para o mundo da arquitetura. Isso gera efeitos catastróficos, como confundir a Arquitetura com a promoção de edifícios, imaginados ou realizados, sem qualquer compromisso com a realidade construtiva e com os contextos físicos e sociais. Ou, então, perder o discurso da arquitetura e do urbanismo e substituí-lo pelos discursos do técnico, do economista, do sociólogo, do filósofo, do estatístico, do crítico de arte ou do advogado, por exemplo. Essa ³importação² é o contrário da operação albertiana pois retira-lhe os elementos fundamentais: a exigência da interpretação; a tradução e apropriação devida e própria a um campo disciplinar com suas especificidades e tradições que não devem ser abolidas mas transformadas e enriquecidas, tal com o vulgar pelo contato com o latim e vice-versa; e o firme propósito de produzir um conhecimento não apenas novo mas sobretudo útil para a construção de um mundo e de um homem melhores e mais felizes.
Em segundo lugar, criticamos aqueles que pensam ser a criação o advento de uma novidade absoluta e completamente original, surgindo do nada e desvencilhada de qualquer tradição. Parece-nos melhor fazer o novo surgir de uma operação ao mesmo tempo hermenêutica e experimental, onde a teoria e a cultura são dominadas amplamente e onde os vários campos disciplinares são colhidos por um ³olhar alado² e por um pensamento poliédrico, metamórfico, múltiplo, rápido, leve e interessado tanto em conhecer o mundo e a si mesmo quanto em transformá-lo, desde sua dimensão espiritual e formal até sua dimensão mais material e técnica. Pois uma dimensão se compenetra na outra e tudo está em tudo: as humanidades estão na arquitetura assim como a arquitetura está nas humanidades. Sem, contudo, se confundirem ou abdicarem de seus discursos e propriedades. Trata-se, portanto, de uma compenetração avessa a qualquer promiscuidade.

3.2. Leonardo: Arte, Técnica e Ciência
Do entrelaçamento de suas investigações empíricas com as reflexões sobre textos científicos herdados, surgem as invenções e desenhos anatômicos, mecânicos, hidráulicos, botânicos e cartográficos de Leonardo antecipando grandes avanços científicos, tecnológicos e artísticos, mas que não tiveram grande impacto entre seus contemporâneos por permanecerem fora de circulação.
Os trabalhos gráficos e técnicos que estudaremos a seguir mostram como inovações artísticas e arquitetônicas podem originar-se fora do campo da Arte e da Arquitetura, como, por exemplo, ao desenhar partes do corpo humano, estudar hidráulica e o movimento dos fluidos e descrever máquinas em perspectivas explodidas ou axonométricas que depois serão exportadas para a representação arquitetônica. A ciência ­ entendida entre os renascentistas, a grosso modo, como descrição da natureza ­ exige técnicas representativas inéditas para dar conta dos novos conteúdos do conhecimento e da nova natureza que se apresenta ao olhar de Leonardo. Tais técnicas ­ entendidas como ³habilidade² ou destreza em se fazer algo ­ acabam por se transferir e configurar novos símbolos e conteúdos expressivos, renovando a arte.
Os Desenhos de Igrejas (1487-1490) também comportam um caráter eminentemente abstrato, geométrico e conceitual. Não se referem a um objeto existente a ser descrito nem a um projeto determinado encomendado por um cliente. São especulações formais e técnicas acerca da planta central do edifício e da composição volumétrica da igreja em busca de um ideal de perfeição matemática e simétrica. Também neles a ênfase está nas linhas e no contorno da edificação e suas partes principais, comunicando claramente ao espectador os princípios compositivos que presidem o projeto e evitando-se os elementos mais propriamente fenomênicos ou afetos à sensibilidade, tais como as variações de luz e sombra, que poderiam confundir aquela comunicação. São também prospectivas de novos espaços para a razão moderna e para a especulação de outras possibilidades estéticas, técnicas e funcionais empreendida no Renascimento. Este caráter conceitual e especulativo é reforçado pela presença de textos descritivos ou especulativos junto aos desenhos, como ao verificarmos o esboço do desenho de uma máquina, simulando uma perspectiva axonométrica, semelhante aos Desenhos de Manivelas, de 1485-1488. Em parte, essa vizinhança se deve às heranças deixadas pela ausência do papel de desenho, só inventado no século anterior, o que exige economia e aproveitamento máximo dos pergaminhos e do trabalho exigido para confeccioná-los.[13] Mas essa proximidade física entre as representações estética e técnica mostra-nos como estes dois universos caminhavam juntos e como a concepção da forma edificada não se desprende do modo e dos trabalhos exigidos para construí-la.
Os Desenhos de Crânios em Perfil e Corte (1489) são preciosos. O sombreamento realça profundidade e volume, e as formas internas e externas de nosso corpo são colocadas em relação e referência recíprocas. Nesses desenhos, planta, corte, elevação, perspectiva e profundidade são sintetizados de modo a dar conta da espacialidade interior, da massa e do volume da caixa craniana. Correlacionam-se as várias perspectivas e representações do mesmo objeto através de uma técnica de representação anatômica que depois é transferida, ainda enquanto técnica, para os desenhos de arquitetura e que, em seguida, atingirá a própria concepção do espaço arquitetônico. Nesta época, pesquisava-se intensamente modos de representar a seção e a perspectiva de um interior redondo e os crânios desenhados por Leonardo lidam justamente com esta dificuldade. Através da técnica de representação, com os eixos ortogonais esboçados na ³planta² do crânio e com o sombreamento do desenho, Leonardo consegue a representação bidimensional de uma realidade tridimensional, de um espaço interior e de um volume esférico ou elipsoidal que, como veremos, ser-lhe-á utilíssimo para descrever espaços construídos como o das suas igrejas de planta central. O olhar arquitetônico captura e representa a espacialidade interna e conduz o olhar do anatomista que descreve a cavidade craniana. A arquitetura, como modo de olhar e estrutura em que os objetos e seres passam a ser vistos, difere do olhar do pintor naturalista e da arte figurativa. E é justamente esta dimensão arquitetônica com que o mundo é visto em sua varietà e em sua profundidade que distingue o olhar de Leonardo, seja como artista, seja como cientista. Descrever a natureza exige a imaginação e a invenção de novas técnicas representativas as quais só podem desabrochar quando estão juntos o artista e o cientista, a habilidade técnica com a capacidade de observar e descrever a natureza. Quanto mais fiel a esta natureza, mais a imaginação é solicitada para compor sua representação. Mas Leonardo vai além disso e muda o próprio trabalho científico: a imaginação e a invenção servem, em última análise, para que seu trabalho não se limite àquelas observação e descrição e passe a especular sobre os mecanismos invisíveis da natureza e do corpo humano, através daquilo que o desenho, e não a simples observação empírica ou a leitura de tratados, é capaz de sugerir. No Crânio Cortado, de 1489, reaparecem a mesma técnica de sombreamento, a mesma correlação interior-exterior, o mesmo poder sintético e especulativo do desenho. A descrição e a especulação figurativa e discursiva estão juntas e deixam-nos ver a amplitude mental em que se move o interesse do pesquisador.
O Desenho para Igreja de Planta Central (1507), prova-nos como todas essas técnicas, inclusive aqueles dois eixos ortogonais que estruturam a planta e a representação do espaço circular, são transferidos e aplicados ao universo espacial no qual se desdobram interesses equivalentes. O olhar arquitetônico que se aplicara à anatomia encontra aqui o objeto apropriado para realçar a volumetria e unidade da edificação, e não seus elementos planos ou lineares; correlacionar planta, elevação, corte e perspectiva dentro de uma representação única; e descrever de forma privilegiada a espacialidade interior e a massa do edifício. A bidimensionalidade do desenho passa a dar conta da tridimensionalidade do real. Novas técnicas de representação são exigidas por um conteúdos e interesses novos a pautarem a descrição produzida por Leonardo. E, depois de formuladas como técnicas novas da representação do edifício, passam a atingir a própria produção da arquitetura, concebendo-a em termos de massa e volume. Prefacia-se aqui a arquitetura monumental que dominará o século XVI substituindo a arquitetura mais linear, plana e aérea, construída com base na repetição de módulos, como a que caracterizara o século XV e, especialmente, Brunelleschi.
Concluímos, portanto, que de um campo e uma intenção extra-artística, como a do anatomista e botânico, tal como os concebemos hoje, podem surgir novas técnicas, representações e conteúdos artísticos. Reciprocamente, o olhar do artista pode fecundar os objetos científicos, inquiri-los através do desenho como em Leonardo, e dar origem a conteúdos e possibilidades que antes permaneciam ocultas. A representação torna-se, assim, verdadeira ³apresentação² de algo inédito, de um mundo novo e de um conhecimento novo do mundo. Como bem conclui James Ackerman em seu estudo sobre os desenhos de Leonardo, se perguntássemos se sua visão do mundo era artística ou científica nem ele próprio saberia responder. Essa distinção, que se firmará no século XVII, sobretudo francês, era-lhe estranha pois Arte e Ciência transitavam num mesmo caminho que ainda não se bifurcara.
Um desenho convulso se insinua no trabalho técnico do Projeto para Dique realizado por Leonardo em 1502. A atenção do ³engenheiro² não se centra propriamente no dique, mas no redemoinho formado pela água diante daquilo que a barra. É um trabalho técnico, mas também um estudo sobre o movimento dos fluidos. Também no Projeto de Canal Ligando Florença ao Mar (1504), o trabalho não é apenas técnico. Feito em sanguínea, ele se conclui num desenho quase abstrato, como as manchas da pop-arte, sem uma mímesis ou uma descrição apurada do projeto. São canais, mas também são nervuras, veias e linhas convulsas e espiraladas que formam uma rede. Tal analogia não é gratuita: o próprio Leonardo pensa nossas veias como rios e vice-versa.
Nos Estudos Hidráulicos (1507-1509), toda a atenção reside na mesma hecatombe do movimento e na representação da passagem dos torvelinhos líquidos que exigem também um desenho espiralado e uma técnica convulsa. São as mesmas espirais turbulentas desenhadas e vistas em gatos, dragões e homens em movimento. O olhar de Leonardo vê o fluxo constante de imagens e seres em suas diversidades caóticas às quais o espírito está exposto e cuja representação melhor se dá no desenho do que numa razão que se pretenda universal e de posse de verdades fixas inabaláveis. Suscetível ao fenômeno da mundo, o espírito de Leonardo se expõe lépido e sem peso, suspendendo os poderes do juízo e passando a confiar na sua percepção do mundo. Essa ³crença irrestrita no mundo² é o ponto de partida de sua ciência e de sua arte, conduzida pela idéia de um espírito que move e se modifica continuamente e não pela de um espírito que se mantém como um puro e caduco pensar metódico: também aqui Alberti prenuncia Leonardo. E também, talvez, o ceticismo de Montaigne.
O desenho inferior desses Estudos Hidráulicos é quase irreconhecível. São como manchas superpostas e imaginadas no movimento da água feitas para compreender e ³apresentar² o movimento e o comportamento dos fluidos. Contudo, eles já apresentam o motivo, a técnica e os mesmos movimentos que comporão o caos do Armagedon, com o qual se preocupa Leonardo ao final de sua vida. O Caos, de 1513, é preparado no trabalhos técnicos em que se estudava aquele movimento dos fluidos. Nestes, se engravida o expressionismo e a subjetividade trágica daquele desenho. A visão do Armagedon é a visão do artista ³prospetivada² na técnica, na hidráulica, na ciência e na descrição da natureza. Como dissemos, nem o próprio Leonardo saberia dizer se o cientista precede o artista ou se o artista precede o cientista. Arte, técnica e ciência são um corpo só: é rio e veia ao mesmo tempo; é dique, redemoinho e caos num espaço só.
Aplicando a habilidade técnica à ciência, Leonardo faz com que esta ultrapasse seu discurso descritivo ou explicativo para conferir-lhe um caráter especulativo, experimental e técnico. Aplicando a experiência concreta da natureza, ou sua observação qualificada pela experiência possível, Leonardo faz a Arte superar a imitação dos antigos, e mesmo contemporâneos, e a obediência a preceitos manualísticos herdados das oficinas. Com ele, como em Alberti, a Arte se torna modo de conhecimento novo do mundo e construção de mundos possíveis, captura de uma realidade mais humana do que divina e produção, não apenas de um artefato ou objeto, mas do próprio espírito que deverá habitar e percorrer, de modo lépido e sem peso, estes novos mundos possíveis e os diversos campos disciplinares constituídos ou em vias de se constituírem, como em nossos tempos.
[1]Este artigo faz parte de nossa produção na pesquisa ³Arquitetura e Humanismo² desenvolvida junto ao CNPq. Resumido e em forma de conferência foi apresentado na abertura da disciplina de pós-graduação em História da Arquitetura coordenada por Gustavo da Rocha Peixoto na FAU-UFRJ, em 27 de maio de 2004.
[2]Sobre isto cf. BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. ³Transdisciplinaridade e Humanismo: Além e Aquém das disciplinas². Interpretar Arquitetura, Belo Horizonte, 2002, v. 3, n. 5, p. 7-14. Acessado pela internet: .
[3] Para um estudo sobre os agrupamentos em que a Arte e a Arquitetura se encaixaram antes do século XVIII convidamos à leitura do capítulo sobre ³O sistema moderno das artes² em KRISTELLER, Paul O. Concetti rinascimentali dell¹uomo e altri saggi. Trad. Simoneta Silvestroni. Firenze: La Nuova Italia, 1978.
[4]De modo similar se dá a redefinição da pintura. O De Pictura, de Alberti, diferindo das manualísticas técnicas como os tratados de C. Cennini e mesmo o de L. Ghiberti, define as etapas do procedimento do trabalho pictórico associando-se à matemática e à ótica, de um lado, e à retórica, de outro. Sobre isto e sobre a Arte e Arquitetura em Alberti, cf. BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Quid Tum? O combate da arte em Leon Battista Alberti. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000.
[5] ABBAGNANO, Nicola. Dizionario di Filosofia. Milano: TEA, 1993. p. 260.
[6] ALBERTI, Leon Battista. De Re Aedificatoria/L¹architettura (a cura di Renato Bonelli e Paolo Portoghesi). Texto latino e trad. Giovanni Orlandi. Milano: Il Polifilo, 1966. Livro VI, 1, p. 441.
[7] Cf. ALBERTI, Leon Battista. De Re Aedificatoria/L¹architettura (a cura di Renato Bonelli e Paolo Portoghesi). Texto latino e trad. Giovanni Orlandi. Milano: Il Polifilo, 1966. Livro VII, 7, p. 569.
[8] Como a goteira e os mútulos, cuja forma é descrita como um ³C² ou como um ³C invertido², e as volutas jônicas cujo perfil é um ³S². Cf. ALBERTI, Leon Battista. De Re Aedificatoria/L¹architettura (a cura di Renato Bonelli e Paolo Portoghesi). Texto latino e trad. Giovanni Orlandi. Milano: Il Polifilo, 1966. Livro VII, 9, p. 593-597 passim e VII, 12, p. 623.
[9] Cf. MOROLLI, Gabriele; GUZZON, Marco. Leon Battista Alberti: i nomi e le figure, p. 11. Segundo Morolli, talvez sobrestimando um pouco o poder da palavra em Alberti, o autor atesta uma ³fiducia tutta umanistica nella parola, nel sapiente e potente strumento della lingua che, grazie alla sua versatilità e perfezione, riesce a dare conto di ogni aspetto della realtà, di ogni branca del sapere (e, quindi, anche dell¹architettura), rifuggendo per giunta da tutti quegli equivoci che le raffigurazioni schematiche specialmente di edifici, invece, non riescono il più delle volte ad evitare.² Cf. MOROLLI, GUZZON. Leon Battista Alberti: i nomi e le figure, p. 10. Sobre esta relação entre o ³ornamento² e a ³escritura², Damisch salienta que o ornamento albertiano procede de ³un ordine strettamente grafico, se non orto-grafico, e che appartiene in quanto tale a un livello d¹articolazione anteriore, in termine ontologici, a quello stesso della parola.² DAMISCH. Comporre con la pittura, p. 190.
[10] Por impossibilidade de representação gráfica, salientamos que os h desta última linha seguindo o c e o g, aparecem como sobrescrito no pergaminho da Riccardiana para distinguir, respectivamente, a pronúncia velar surda e velar sonora. Da mesma forma, o ç desta linha indica a ³africata² dental surda. Sobre isso e para maiores detalhamentos da ordenação formal das letras cf. ALBERTI, Leon Battista. Grammatichetta e altri scritti sul volgare (a cura di Giuseppe Patota). Roma: Salerno, 1996. p. xxv-xxvii e p. 13 e PATOTA, Giuseppe. Lingua e linguistica in Leon Battista Alberti. Roma: Bulzoni, 1999. p. 71.
[11] No manuscrito da Grammatichetta, só este h aparece como sobrescrito.
[12] Como diz Gorni, Alberti acolhe o signo alfabético como ³un¹occasione stilizzata di rappresentazione geometrica². GORNI, Guglielmo. Leon Battista Alberti e le lettere dell¹alfabeto. p. 275-276 apud PATOTA, Giuseppe. Introduzione. In: ALBERTI, Leon Battista. Grammatichetta e altri scritti sul volgare (a cura di Giuseppe Patota). Roma: Salerno, 1996. p. xxvi.
[13] Sobre a invenção do papel de desenho no século XIV e sua repercussão nas representações da arquitetura, cf. ACKERMAN, James. Origins, imitation, conventions: representation in the visual arts. Cambridge, Mass: Massachusetts Institute of Technology, 2002. p. 27-65.

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